sexta-feira, 2 de maio de 2014

Os mortos e outras historias

                                                           O SUSPEITO



   Domingos, um individuo de 48 anos de idade que aparenta, em função de sua fisionomia cansada e dos vastos cabelos brancos, ser bem mais velho, trabalha como porteiro a exatos 26 anos ,desses ,15 apenas no mesmo local,o luxuoso edifício Maison Vinicius de Moraes. Domingos acorda todos os dias as 4:30 da manhã, prepara o café preto, toma banho, se arruma e se despede de Isaura, a devotada companheira de longos 20 anos de convívio. Antes de sair de casa passa pelos quartos dos filhos, que ainda dormem o sono dos inocentes, três filhos, o rapaz de 17, orgulho dos pais. Ensino Médio concluído a pouco, boa classificação no ENEM, o jovem é o mais novo futuro calouro de Historia, a filha de 15 é quem faz a pressão arterial de domingos acelerar, garota rebelde, já namora, repetiu o 9º ano do ensino fundamental, terá que repetir tudo outra vez. Dona Isaura aconselha:  Educação é tudo na vida. Namorado só atrapalha. Domingos quer lavar as mãos, mas pensa na sua vida de trabalhador semi-escolarizado. Apesar de toda sua experiencia, é muito mal remunerado e bastante desrespeitado. O homem insiste, também aconselha. No quarto de casal. agarrado ao peito da mãe, o pequeno faz sua primeira refeição do dia. Domingos sorri e sente disposição para sair ao trabalho. Apanha a mochila, acondiciona a marmita já preparada. Arroz, frango e feijão. Sobras do jantar. 
   Domingos sai de sua casa humilde, ainda escuro. 5:00 horas da manhã, parada de ônibus lotada, ônibus lotado. Muitos Joões e Marias seguem para o trabalho, rostos anônimos. Nas bolsas e mochilas, suas marmitas chacoalham com o balançar do ônibus lotado. 
    Já são 6:30 da manhã e Domingos chega ao trabalho. O luxuoso condomínio Maison Vinicius de Moraes. Domingos é homem culto, apesar da pouca escolaridade, ele aprendeu que o conhecimento diferencia os iguais. Ele não entende o porque da mistura de francês com português no nome do edifício. Por que não Casa de Vinicius de Moraes? O poetinha com certeza ficaria mais feliz, pensa Domingos. 
    Domingos assume o entediante serviço da mesma forma como faz a 26 anos. Deixa a família no subúrbio, na sua humilde, porém própria, residencia, para controlar a entrada e saída do luxuoso Casa de Vinícius de Moraes, como prefere chamar. Advogados, médicos, juízes, funcionários públicos de alto escalão são seus moradores. Domingo é respeitado por alguns e até mesmo amigo de alguns poucos. A grande maioria o ignora, não lhe dirigem sequer um bom dia. Mas Domingos não reclama. Ele sabe que para ser gentil e educado não é necessário haver retorno. O porteiro não sabe, mas a rotina do Residencial, hoje, será quebrada. 
    Alvoroço no edifício. Não se sabe como, ou por quem, um furto em um dos apartamentos irá marcar para sempre a vida de Domingos. A senhora do 301, alta e elegante, senhora distinta, na casa dos 50, mas aparentando uns 30 e poucos, ás custas de muita plástica. Ela deu o alarme. Roubaram-lhe as jóias de estimação. A polícia não demora, no muito, 15 minutos. E Domingos pensa em como o tratamento é desigual até na hora do crime. A polícia investiga, a distinta senhora pede agilidade e se desespera. Como as jóias sumiram, quem as levou, como as levou, serão esclarecidos pela polícia, talvez. O que se tem no momento são os suspeitos, perigosos meliantes, segundo a polícia. Todos funcionários do condomínio, mais a empregada da elegante senhora, mulher negra, gorda e analfabeta, com 20 anos de trabalhos prestados para a distinta senhora. Domingos pensa: eu nem estava aqui no condomínio e no entanto sou suspeito. Mais uma vez lhe vem a mente, a máxima: a desigualdade está presente até na hora do crime. 
   Investiga-se a vida de cada funcionário, quantos filhos, onde mora, com quem vive, com quem se relaciona no dia-a-dia, quanto deve na praça. Domingos, o porteiro semi-escolarizado, porém culto,leitor de Proust e Camus, amante da poesia de Maiakovski e apreciador do jazz lamentoso de Chet Baker, responde a todas as perguntas dos rudes policiais e também pergunta, por que nós somos suspeitos? , ao passo que no mesmo instante, antes mesmo do homem terminar de falar, lhe é dado a resposta:É porque vocês são pobres e, consequentemente, suspeitos!. Domingos não retruca, pensa na mulher, nos filhos, o mais velho agora universitário, a garota problemática e no pequeno, seu xodó. Pensa nos 15 anos de serviço, prestados no mesmo local, 12X36, não tem feriado, não tem fim de semana, não tem apertos de mão e mal recebe um bom dia. Domingos, o porteiro, em silencio, finalmente entende que o valor do indivíduo está naquilo que possui e não naquilo que é. O experiente porteiro, um suspeito, como todos os outros funcionários do condomínio mais a coitada da empregada da distinta senhora. Todos serão rigorosamente investigados e o culpado aparecerá, garante o delegado, do alto de sua arrogante eficiencia. A distinta senhora desde já agradece o empenho e torce pela elucidação do caso. Domingos apenas se resigna e suspira. Na sua mente, o velho e batido ditado: quem não deve não teme.


PS: Os "eficientes" policiais nunca descobriram o paradeiro das jóias da distinta madame. Simplesmente por que elas foram surrupiadas por seus distinto filho, Guilherme, o Gui. Garotão sarado, semi-escolarizado, aos 18 anos empacou no primeiro ano do ensino médio. Admite com orgulho que nunca leu um livro. Seu sonho, viajar para a Bolívia, para comprar cocaína. Gui nunca foi considerado suspeito, afinal de contas, os diferentes nunca serão iguais aos demais.

domingo, 27 de abril de 2014

Os mortos e outras histórias

                                                           O sortudo

  Francisco,37 anos de idade,alto e magro,é o que se pode chamar de sujeito sem muitas perspectivas na vida.Ensino fundamental incompleto,mulher e três bocas pequenas para alimentar.Francisco se define apenas como um sujeito sem sorte.O gari que um dia sonhou ser advogado hoje ganha a vida recolhendo o lixo descartado todos os dias pelas pessoas.Uma pessoa que nunca teve sorte na vida um dia deu de cara com ela,em meio aos sacos pretos de lixo  Francisco visualizou uma sacola amarela,tudo passaria batido na rotina diária do gari não fosse uma qualidade pouco exercida por ele,a intuição.Intuição que o fez pegar a sacola e desatar o nó daquela comum  sacola de mercado e por consequência, se deparar com aquilo que Francisco sempre imaginou jamais presenciar na vida,maços de dinheiro,notas de 50,20 e 10 novas e velhas, algumas bem surradas,nada que fizesse muita diferença para o humilde gari.Os olhos de Francisco brilharam e ele sentiu que finalmente havia tirado a sorte grande e imediatamente pensou no dono do dinheiro e seu desespero ao saber que havia perdido tal quantia,pensou também o que o azarado dono do dinheiro iria fazer com o mesmo, sentiu vontade de procura-lo e devolver o dinheiro.Francisco teve pena do desgraçado mas se lembrou da mulher doente e dos filhos famélicos dentro da sua casa simples de tijolos sem reboco,veio lhe a mente os conselhos do pai já falecido''o que não nos pertence nunca sera nosso''e que a honestidade é tudo na vida.Francisco suspirou,praguejou e fez aquilo que muitos fariam, e que julgou ser a coisa certa a se fazer,embolsou a bufunfa e voltou a velha rotina de recolhimento de lixo.Francisco o gari que um dia quis ser advogado,pobre e sem perspectivas abraçou a sorte sem pestanejar e murmurou: que se foda, mais vale um bucho cheio que um honesto com fome.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Os mortos e outras histórias

  
                                                  O torturado


 Carlos um setentão que acredita ainda ser um jovem universitário vivendo em 1969,membro de um grupo revolucionário de esquerda que se opõe a ditadura militar.Todos os dias Carlos sai de seu''aparelho''as 6 horas da manhã devidamente guarnecido por seu velho calibre .38 canela seca expropriado de um vigilante do ultimo banco  também  expropriado.Carlos segue pela avenida Paulista a bordo do seu velho fusca 65, em direção ao subúrbio. Carlos foge,não se sabe de quem ou do que, ele apenas foge, na sua cabeça o aparelho foi  estourado pela repressão .Carlos na verdade é o codinome de Paulo  preso em 1969,torturado barbaramente e depois solto.Em liberdade fisicamente porem preso a uma época,um acontecimento,um fato.Carlos/Paulo apanhou demais,quebraram lhe os dentes, arrancaram suas unhas das mãos e pés e lhe deram choques no seu genital,bateram demais na cabeça de Carlos/Paulo.Ficou parado no tempo,semi morto ou semi vivo,Carlos/Paulo se formou,arquitetura,nunca rascunhou um edifício sequer ,sua atividade mesmo é vender livros,bom vendedor lê todos os livros que vende,filosofia e politica são seus preferidos,O Capital de Marx já leu inúmeras vezes,vez ou outra Carlos/Paulo se pega a discutir sozinho os princípios do Socialismo e como será bom quando as reformas de base do Jango forem postas em pratica.Carlos/Paulo para muitos esta louco,mas para sua esposa Neusinha é apenas um sonhador perdido no tempo.Carlos/Paulo não compreende, mais a vida para ele passou e seus ideais se perderam no tempo.O velho revolucionário que se acredita ainda um jovem de vinte e poucos anos só não esquece da dor da tortura,por isso mesmo  nunca sai do seu ''aparelho'' desarmado e sempre anda por ai olhando para todos os lados,desconfia de todos e de tudo.Carlos/Paulo é apenas um daqueles jovens que utopicamente ousou enfrentar uma maquina de morte, um exercito,e quem sabe derrota-lo,deu sorte de continuar vivo,ao contrario de muitos outros jovens,homens e mulheres.Carlos/Paulo continua vivo ou semi vivo ou talvez semi morto.